A vida no lixo

Trabalho é duro, mas não coloca comida na mesa

Abandonadas, algumas associações de catadores recebem materiais contaminados e garantem renda entre R$ 100 e R$ 200 para trabalhador

Publicado em 20/11/2017 às 09h40

Texto: Luisa Torre, Mikaella Campos e Natália Bourguignon

Fotos: Marcelo Prest

Na panela de Jocélia dos Santos, 33 anos, há apenas um pouco de arroz feito no fogão a lenha. Armários e geladeira estão vazios. Não tem feijão, carne ou mesmo ovo para alimentar a filha Jaciele, de 2 anos, que tenta tirar de uma caixa de leite vazia o sabor que a ela todos os dias é sonegado.

A pobreza dessa família de São Mateus, que vive numa casa de dois cômodos sem reboco e de piso de cimento, é reflexo da falta de estrutura que se repete em várias associações de catadores de materiais recicláveis formadas no Estado. Criados para tirar esses trabalhadores de uma situação subumana e dar melhores condições de renda, muitos grupos não têm cumprido esse papel por descaso do Poder Público.

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Jocélia, por exemplo, faz parte de uma turma de profissionais cujo os ganhos mensais não são suficientes para comprar comida, pagar moradia e garantir qualidade de vida aos filhos. Assim como ela, muitos trabalhadores têm sobrevivido com orçamento entre R$ 100 a R$ 200 por mês, valores baixos ao ponto de incluir essas pessoas entre aquelas que estão na linha da pobreza. Em 2015, o Banco Mundial definiu que está abaixo da linha quem vive com até US$ 1,90 por dia – cerca de R$ 186 por mês.

O motivo de tanta depreciação da renda é a ineficiência na coleta seletiva implantada por alguns municípios. Parte dos produtos recicláveis que deveriam ir para as organizações ainda é enviado para aterros sanitários. E nem sempre o que chega aos catadores tem utilidade. Além de produtos sem valor, tornou-se comum os materiais reaproveitáveis serem levados aos galpões dos trabalhadores contaminados por animais mortos, misturados a lixo hospitalar e a outros componentes orgânicos como comida, papel higiênico usado e fraldas descartáveis.

Uma das piores situações entre as 60 associações que existem no Estado é a da FlexVida, localizada no bairro Porto Novo, em Cariacica.

O grupo de 10 catadores se uniu em 2000, mas só em 2012 formalizou a associação. No entanto, a legalização do trabalho não foi o suficiente para garantir uma remuneração digna. Depois de pagar o aluguel do terreno onde funciona a entidade, a luz, água e a comida comprada para fazer o almoço dos trabalhadores, sobra entre R$ 100 e R$ 150 pra cada um do dinheiro arrecadado com a venda dos recicláveis.

“Recebemos em média 19 toneladas de material, mas só 9 toneladas saem limpas. Ou seja, mais da metade a gente não aproveita”, conta Matília Maria de Loures Alves, 61 anos, presidente da associação. Ela disse que complementa a renda da casa com R$ 85 que ganha do Bolsa-Família.

“Temos recebido muito papel higiênico. A gente separa o lixo sujo do reciclado e coloca o que não dá pra usar na rua de novo para o carro de lixo passar novamente e levar. Também vem lixo de posto de saúde, tudo contaminado. A sacola até está sinalizada, mas muitos aqui não sabem ler e acabam abrindo e mexendo. Esses dias chegou uma, quando eu vi estava cheia de agulha e seringa espalhado no chão. Eu tive que juntar tudo de novo”, acrescenta Matília, que disse já ter se contaminado com o lixo. “Peguei uma infecção e fiquei 18 dias internada no hospital.”

Além da mistura de materiais recicláveis com rejeito atraírem bichos, como ratos e baratas, os catadores de Cariacica sofrem com a falta de uma estrutura adequada para realizar a triagem. O material não tem uma área para depósito. Uma lona improvisada é usada pelos trabalhadores durante a separação.

INSUFICIENTE

Em São Mateus, a estrutura do galpão da associação no bairro Vitória é um pouco melhor: há cobertura de metal e espaço administrativo. Mas o material que chega ao local mal garante a sobrevivência dos trabalhadores. Muitos sequer conseguem ir trabalhar de segunda a sexta pois não têm recurso para arcar com as passagens de ônibus.

A associação existe desde 2008, e antes dela era cada um por si, conta Neide Maria Alves Benedito, catadora de 40 anos. “A gente catava da rua, com carrinho e vendia tudo a preço de banana. Mas quando trabalhava cada um por si, eu tirava até R$ 2 mil. Sabia que tinha que dar meus ‘pulos’, começava às 6h30 todo dia. Penso em sair da associação, pois tem muita gente aqui, e a gente divide tudo. Se não fosse o Bolsa-Família, não ia ter como”, lamenta. São 17 pessoas na associação, mas, segundo ela, 8 seriam suficiente com o atual volume de resíduos que chega até lá.

A gente tira uns R$ 250, R$ 300 por mês. Para quem tem 5 filhos é pouco.
Maria Aparecida Santos

Vindo de Vitória para São Mateus, Reginaldo Pinheiro, de 27 anos, decidiu mudar pois se apaixonou pela catadora Maria Aparecida Santos, de 37 anos. Os dois trabalham na associação e, como têm doenças psiquiátricas, não conseguem emprego formal. “O que a gente recebe não é suficiente, e a gente recebe pouco dinheiro. Se tivéssemos um contrato com a prefeitura para fazer a coleta seletiva, a história era outra”, comenta.

Já Maria Aparecida revela a situação da casa: “A gente tira uns R$ 250, R$ 300 por mês. Para quem tem 5 filhos é pouco. De vez em quando falta dinheiro para pagar as coisas, aí a gente espera outro pagamento. Carne, coitada d’eu! Nem ovo dá para comer todo dia”, lamenta.

A baixa remuneração faz com que muitos associados não trabalhem o ano todo na separação do lixo seco. A catadora Doralice Santana, de 58 anos, conta que em época de colheita, deixa o trabalho de reciclagem.

“Quando chega a época da macadâmia, que eu sei que aqui não dá nada, eu vou lá catar macadâmia. Entro lá em janeiro e fico dois, três meses. Lá eu tiro um salário. É bem melhor que aqui e é de carteira assinada. Depois da macadâmia, eu vou para o café, e depois eu entro aqui para não ficar em falta das coisas”, destaca.

Os trabalhadores vão vivendo, como eles mesmo dizem, e não sabem como será o futuro. “Não sei o que vou fazer para aposentar. Mas o governo tem que aposentar sim, nós já trabalhamos muito. Desde 10 anos que eu trabalho em roça”, relata Teresinha dos Santos, de 50 anos.

RESTRIÇÕES

A dificuldade na geração do resíduo começa na separação em casa, explica o coordenador-geral do Instituto Sindimicro, Hugo Tofoli, e passa pelo baixo investimento em educação ambiental e em fortalecimento da coleta seletiva. “A política de resíduos sólidos se baseia em três pilares: na ação do poder público, com a destinação correta, logística e educação ambiental; na associação de catadores, que fazem a reciclagem; e no cidadão, que tem que separar seu resíduo. Por mais que tenha investimento público, se o cidadão não separar dentro de casa, não vai acontecer”, comenta.

O primeiro passo no Estado para melhorar a vida dos catadores foi criar associações, que permitem a eles ter mais força para negociar com os intermediários, que compram material e revendem à indústria, e ter alguma tipo de formalização. Um levantamento de 2016 da Aderes, agência responsável pela organização dos catadores no Espírito Santo, mostrou que existem cerca de 1.000 pessoas trabalhando na função no Espírito Santo. Em 2015, havia 16 associações no Estado. Hoje, há cerca de 70.

Dos 700 catadores já dentro de associações e qualificados pela Aderes, 60% são mulheres, e 55% têm ensino fundamental, contra 30% com ensino médio. Mais de 60% já recolhe o INSS dos trabalhadores, e a maioria é microempreendedor individual (MEI).

Segundo o estudo, nos municípios que a prefeitura têm contratos de coleta seletiva com os catadores, eles recebem entre R$ 700 e R$ 1.100. Onde não há contrato, a renda média fica entre R$ 600 e R$ 900.

Segundo Edilson Rodes, diretor-presidente da Aderes, o objetivo desse trabalho é a emancipação econômica dos trabalhadores. Há trabalhadores que já têm emancipação financeira, garante ele.

“Nós demos cursos, oficinas, fizemos reuniões, acompanhamento psicológico, financeiro, administrativo e preparando planos de negócios, ensinamos a emitir nota fiscal do produto. O Estado tem comprado equipamentos para as associações, como prensas e balanças. A nossa meta é formar redes para facilitar a negociação, através de um escritório gerenciado. Assim, o comprador vai pagar o mesmo preço para catadores de municípios diferentes.”

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