Às favas com os fatos: o suicídio do TSE

Tudo vale a pena, se o tribunal não condena


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O pior cego é aquele que não quer ver. A pior cegueira, já dizia Raul Seixas, é a da visão. No caso específico, a visão estritamente processual, que é cega a ponto de se sobrepor ao mérito das provas e de Sua Excelência, o Fato. Pelo modo como caminham as discussões no Pleno do TSE, o julgamento da chapa Dilma-Temer na Corte vai entrar para a posteridade por um desfecho insólito e paradoxal na história do Direito não só eleitoral: pela primeira vez, um réu é absolvido por excesso de provas.

Como disse o ministro-relator Herman Benjamin, “não serei o coveiro de provas vivas. Estou participando do enterro, mas não carregarei o caixão”. O “caixão”, no caso, é o “caixão dois” praticado largamente pela campanha de Dilma e de Temer em 2014, com dinheiro de corrupção e propina repassado sobretudo pela Odebrecht, mas que a maioria dos integrantes do Pleno (4 a 3) preferiu sumariamente ignorar, em uma visão estreita e restritiva do Direito que privilegia ritos e trâmites processuais em detrimento de fatos e provas eloquentes, que falam por si.

A prevalecer essa visão cega, ou melhor, a cegueira da visão, os ministros serão os coveiros não só da ação de impugnação da chapa Dilma-Temer, não só das “provas vivas” que davam embasamento de sobra para eventual condenação. Sepultarão, acima de tudo, o próprio tribunal, sua credibilidade perante a sociedade brasileira e, talvez, sua própria razão de existir.

Foto: Amarildo

Que credibilidade terá o TSE de agora em diante para julgar o caso de qualquer vereador e prefeito se, no julgamento definitivo do caso concreto mais importante da história do tribunal, no inédito julgamento de uma chapa presidencial, a maioria dos membros do Pleno prefere deliberadamente fechar os olhos ao oceano de elementos probatórios apresentados pelo relator?

O que está em curso é uma ação deliberada dos quatro ministros vencedores, que chegaram a seus assentos no Pleno na última terça-feira com convicção previamente formada e predisposição inabalável, indiferente ao mérito dos fatos, de poupar os dois membros da chapa, agarrando-se a tecnicismos e filigranas processuais que poderiam perfeitamente ser ignorados, superados pela análise das provas contundentes apresentadas, não fosse a recusa voluntária em enxergar a overdose de evidências didaticamente expostas no parecer do relator.

Como diria outro baiano, conterrâneo e contemporâneo de Raul, estamos diante do “avesso do avesso do avesso” (Caetano Veloso). Do avesso e da aversão aos fatos.

A cegueira da visão

O quarteto divergente de Benjamin alega alargamento indevido do escopo da ação, desbordamento dos limites da investigação, determinados pela petição inicial do PSDB. Levar em conta ou desconsiderar a dita “fase Odebrecht”? No mesmo espírito do “abafa”, preferiram excluir do processo todo o farto material probatório relativo à empreiteira que, nas palavras do relator, “mais parasitou a Petrobras”.

O que surgiu desde o ajuizamento da ação, logo após a eleição de 2014, não foram "fatos novos", mas a "explicitação" de fatos antigos relativos à campanha daquele ano. O raciocínio foi adotado pelo próprio Gilmar Mendes em seu "histórico" voto divergente que possibilitou o seguimento da investigação, em julgamento de recurso no fim de 2015. Não sem razão, o mesmo raciocínio foi sabiamente apropriado pelo relator, que transcreveu e leu, com "encantamento", diversos trechos do "voto histórico" de Gilmar, tomado por ele como "guia" e "Bíblia" do seu parecer, a fim de encurralar e derrubar a retórica do presidente da Corte - que agora, contraditoriamente, lidera a operação abafa para absolver a chapa com base na tese de restrição do julgamento aos fatos expressos na petição inicial do autor da ação.

Noutras palavras, o que surgiu foram provas novas acerca de fatos velhos mas até então desconhecidos quando do ajuizamento da ação pelo PSDB. Como se não bastasse, a Odebrecht estava, sim, citada na petição inicial do autor da ação, conforme demonstrado por Benjamin na última quarta-feira.

Mas ok, exclua-se a Odebrecht.

Mesmo assim, o relator apresentou provas fartas em quantidade e em contundência que atestam, por A mais B, que a chapa presidencial de Dilma e Temer em 2014 foi financiada com dinheiro oriundo de corrupção e propina na Petrobras, seja via caixa dois, seja via caixa um.

Ah, mas a petição inicial não falava de caixa dois. Aqui só podemos tratar de caixa um. Ok, exclua-se a Odebrecht, excluam-se – em malabarismo insano, que vai contra a história e a razão de ser do TSE – todos os fatos e provas que digam respeito a caixa dois, para ficarmos apenas no caixa um. Ainda assim, não importa!

Mesmo com um recorte tão específico, mesmo com o esforço de alguns pares de Benjamin no plenário em estreitar ao máximo o escopo da análise, o ministro-relator conseguiu demonstrar cabalmente que, até no caixa um, a campanha da chapa vencedora em 2014 foi irrigada por dinheiro desviado da Petrobras sob a forma de doações legais e declaradas à Justiça Eleitoral, usada então como a maior lavanderia de dinheiro sujo do mundo.

Isso para não falar em outras tantas irregularidades. O que dizer das gráficas fantasmas, que receberam milhões sem prestar serviço algum?

Autosepultamento

Desde o início desse julgamento, sabia-se que se tratava, de saída, de um “julgamento histórico”. De fato o disseram alguns ministros, como o próprio relator, que fez questão de sublinhar o fato com todas as letras. Sabia-se desde o início, no entanto, que o julgamento poderia entrar para a história de duas formas.

Infelizmente o TSE perdeu a chance de fazer história da melhor maneira. Perdeu a chance única em sua história – e na história da democracia brasileira – de passar a limpo, como disse o ministro Fux, no sistema político-eleitoral brasileiro e na estrutura corrompida de financiamento de campanhas que tomou conta das eleições no Brasil, usurpando a vontade popular que deveria ser soberana e atentando contra a legitimidade das decisões extraídas das urnas.

Perdeu a chance de determinar punição exemplar a candidatos que venceram a eleição presidencial graças ao abuso de poder político e econômico amplamente comprovado nos autos. Com isso, perdeu a chance, enfim, de coibir de uma vez por todas tais abusos e de passar ao povo brasileiro e a toda a classe política a mensagem clara de que a corrupção eleitoral não compensa.

Ao contrário, o TSE preferiu calar-se e cegar-se, transmitindo a mensagem exatamente oposta: a de que tudo vale a pena, se o tribunal não condena. Você, candidato, quer continuar praticando irregularidades nas campanhas para vencer processos eleitorais? Fique tranquilo. Pode abusar à vontade. Não importam a gravidade dos fatos e o volume das provas que os confirmem. O TSE dará um jeito, deter-se-á em questões de prazos investigatórios, prender-se-á em questões de ritos processuais.

Às favas com a modéstia? Às favas com os fatos. O TSE, com essa decisão covarde e regida por motivações políticas mal disfarçadas pelo verniz de argumentos jurídicos, acaba produzindo um julgamento histórico, mas da pior maneira. Hoje é o dia em que o tribunal teve a chance de sepultar a corrupção eleitoral no Brasil, mas, em vez disso, preferiu se sepultar.