O discurso de Lula em Vitória em cinco atos
Confira a coluna Praça Oito desta terça-feira, 05 de dezembro
O comício eleitoral antecipado do ex-presidente Lula na noite de ontem em Vitória só confirmou uma certeza: talvez muitos dos petistas mais fanáticos que gritam a plenos pulmões contra o “golpe” nem sequer o percebam, mas, para o PT e sobretudo para Lula, o impeachment de Dilma Rousseff foi para lá de conveniente. Deu ao mentor de Dilma, prontinho e acabado, o discurso para ele tentar voltar ao poder em 2018: o discurso de cunho messiânico, do grande líder popular “perseguido”, que voltará para redimir o sofrido povo brasileiro e consertar todo o mal causado aos trabalhadores pelas elites golpistas do país que “usurparam” o poder com Temer. Foi esse o discurso que Lula apresentou ontem, por meia hora, a uma militância apaixonada, que já vota nele de qualquer maneira e que não chegou a lotar a Praça Costa Pereira.
A verdade é que Dilma era um estorvo para a cúpula do PT e, principalmente, para Lula. É difícil imaginar como o país estaria hoje se ainda fosse ela a presidente. Mas, a julgar pelo rumo do seu governo – aliás, pela falta de rumo de um (des)governo que estava à deriva –, as coisas dificilmente teriam melhorado sensivelmente. E hoje, em vez de usar e abusar da retórica de que é preciso tirar o país das mãos dos golpistas, Lula deveria estar dando explicações sobre os erros de sua sucessora e sobre o seu próprio erro capital: o de ter inventado Dilma Rousseff na Presidência.
Mas veio o golpe, sob medida para Lula e para inconfessável satisfação do rei do pragmatismo. E agora, em caravana pelo país, Lula faz exatamente o que repetiu ontem em Vitória, em cinco atos:
. Ato 1: Como sempre, o ex-presidente aprofunda a empatia de um público já amigável por sua figura, apresentando-se em seu papel preferido: o do homem simples, do povo, gente como a gente, que chegou aonde chegou contra todas as expectativas: “Sou uma curva fora do ponto (sic). Um operário sem diploma que chegou à Presidência”. Aquele operário já ficou para trás há décadas, mas...
. Ato 2: Enumera as políticas públicas e conquistas sociais que, comprovadamente, melhoraram a qualidade de vida de milhões de brasileiros, sobretudo os de mais baixa renda, ao longo de seu governo. Do Luz para Todos à multiplicação de unidades do Ifes, do Prouni ao Pronaf, Lula citou tudo ontem. “Colocamos gente pobre, mulheres, negros e índios nas universidades.” Mas fez questão de destacar que não foram só os desfavorecidos que saíram ganhando em seu governo. “Deviam estar pedindo bênção para mim, pois nunca ganharam tanto dinheiro”, disse ele, sobre os representantes dos setores produtivo e especulativo.
. Ato 3: Em um salto acrobático, ignora todo o governo Dilma e os sucessivos erros econômicos de sua pupila que conduziram o país à pior recessão do Brasil contemporâneo; ignora que os “golpistas” do PMDB chegaram ao poder à sombra do PT e alimentados por ele próprio desde o mensalão, em uma aliança baseada no mais baixo fisiologismo e muito conveniente para os dois lados até 2015; ignora, enfim, as denúncias formais e a condenação em 1º grau por corrupção que já pesam contra ele por ter se vendido a empreiteiras como a OAS e a Odebrecht.
. Ato 4: Denuncia o entreguismo do governo Temer, que está, em suas palavras, vendendo patrimônio dos brasileiros, como o pré-sal, para o capital estrangeiro. Denuncia o elitismo e a falta de visão das reformas fiscais e econômicas da agenda liberal de Temer: “Limitar investimentos na Educação... Quanta mediocridade!” No mesmo passo, afirma que precisa voltar para combater esse entreguismo e as reformas elitistas dos golpistas para guiar o país de volta àqueles tempos gloriosos de seu governo (2003-2010): “Vou dizer a vocês por que voltei a fazer as caravanas pelo país. É porque cada política pública que a gente fez, eles estão dstruindo”.
. Ato 5: Afirma algo que ele, com a mínima franqueza, não tem condições de afirmar, pois escapa à sua vontade pessoal. “Não fiquem com essa bobagem de que o Lula não será candidato.” Por sinal, a ideia de que uma eleição sem Lula será fraude foi a tônica da fala de muitos petistas no comício. Blefe ou não, Lula, ao fazer isso, mantém-se como ator vivíssimo no páreo eleitoral em 2018 e constrange o Poder Judiciário. Mas, na prática, o que isso sinaliza? Se for condenado em 2º grau, Lula, pela Lei da Ficha Limpa, fica sim inelegível. Ou ele está jogando para a plateia ou está nutrindo o delírio de desrespeitar eventual decisão judicial, o que também seria uma forma de golpe, radicalizando ainda mais um país já conflagrado politicamente.
Justiça Eleitoral
A primeira e mais óbvia constatação: se o que se viu ontem na Praça Costa Pereira não é campanha antecipada, logo irregular, não se sabe mais o que é. Aí dirão: mas Lula não pediu votos de maneira explícita. E precisava?
Jingle
Até um jingle da caravana ficou tocando incessantemente, como se fosse um jingle de campanha. Em ritmo de forró, o refrão diz: “Lula, Lula, a gente nunca vai te abandonar. Lula, Lula, só você nos representa lá”. De novo: se isso não é campanha antecipada...
Renato Cazuzanova
Mais do que comício, o que se viu foi um showmício, algo proibido há muitos anos pela Justiça Eleitoral até durante o período de campanha, que dirá antes. O vocalista da banda Casaca, Renato Casanova, foi um dos animadores do palanque durante a espera por Lula e, acompanhado por sua viola, arriscou até uma paródia de Cazuza: “Vamos pedir piedade. Senhor, piedade, pra essa gente golpista e covarde”.
Espelho, espelho meu
O discurso de Lula foi feito praticamente diante do espelho: na plateia, os militantes de sempre de CUT, MST, Via Campesina, movimentos estudantis, PCdoB... O petista não atinge mais as massas, não mobiliza a classe média, não consegue ir além do seu reduto.
Pedaço do povo
Palavras de Lula: “Não tenho apoio do mercado, não tenho apoio da imprensa, mas tenho apoio da coisa mais importante: o povo brasileiro”. Na verdade, é preciso corrigir: apoio de parte do povo, como atestam as pesquisas de opinião – nas quais Lula, apesar de liderar as intenções de voto, costuma aparecer com altíssima rejeição. E como demonstrou ontem o perfil dos presentes ao ato, eleitorado cativo do ex-presidente.
Falando em mercado
Lula também mandou um recado para banqueiros, investidores, especuladores e analistas de mercado: “Não adianta o mercado fazer terrorismo. Primeiro que não vou pedir votos ao mercado. O mercado vai precisar muito mais de mim do que eu deles”.
Complexo de vira-latas
Lula disse que pretende “resgatar a autoestima dos brasileiros” e disparou: “Os vira-latas daqui não confiam no Brasil”.
Um clássico de Lula
Foi um clássico discurso do ex-presidente, com todos os ingredientes dos quais uma fala sua não pode jamais prescindir: histórias familiares sobre Dona Marisa, anedotas, frases de efeito e metáforas de fácil assimilação. “Em 2003 o povo começou a comer churrasco de picanha e tomar uma cervejinha gelada porque também somos filhos de Deus.”
Paz e amor
Uma coisa Lula aprendeu com Dilma: não faltou o gesto do coraçãozinho juntando as duas mãos, reproduzido até na foto de Lula no fundo do palanque. O petista se disse decidido a reeditar o Lulinha Paz e Amor de 2002. “Quero voltar sendo Lulinha Paz e Amor”.
Nós contra eles
O radicalismo de esquerda, porém, remete mais àquele Lula de 1989. Já a retórica do “nós” (os petistas, os trabalhadores) contra “eles” (as elites golpistas), também bem presente no discurso, remete à campanha de Dilma em 2014. “O que pro rico é considerado necessidade, pra nós é considerado luxo”, disse o “pobre” Luiz Inácio.
Joãozinho 13
“Nós não nos contentamos em vestir roupa de segunda, em comer carne de segunda. Nós, trabalhadores, gostamos de coisa boa”, afirmou o petista. Só faltou repetir Joãozinho 30 e dizer que pobre não gosta de miséria. “Quero que todos tenham as mesmas oportunidades que os filhos das elites têm.”
Engolindo o sapo barbudo
“Como dizia o Zagallo, eles vão ter que me engolir”, arrematou o velho “sapo barbudo”, na definição de Leonel Brizola.
Ouviu, Huck?
Lula também mandou uma indiretaça para Luciano Huck e, por tabela, para todos os líderes políticos e empresariais que apoiavam o lançamento da candidatura do apresentador de TV. “Estão atrás de um candidato. Já foram atrás de um artista da Globo. Tudo que eu quero é um candidato que tenha o logotipo da Globo na testa. Se puder ter o da Veja, o da Época, o da Istoé, melhor ainda.”
Ouviu, Doria?
Também houve indireta para João Doria e para todos que, como o prefeito de São Paulo, querem subir na política vendendo-se como pretensos “antipolíticos”: “Este país não está precisando de um gestor. Está precisando de um político que conheça o povo brasileiro. Se eles têm vergonha de ser político, eu não tenho. Se têm vergonha do partido deles, eu não tenho do meu”.
ES
Sobre o Espírito Santo, a imodéstia de sempre: “Duvido que tenha um presidente que tenha investido mais no Espírito Santo do que eu”.
Frasistas
Uma senhora na plateia optou pelo bom humor na frase estampada em sua camiseta: “Lula ladrão... roubou meu coração”.
Revogar as leis?!?
A fala da representante da Via Campesina, no palanque, mostra o quanto a militância fanática por Lula às vezes parece desconectada da realidade: “Em 2018 vamos revogar todas as leis que os golpistas empurraram às escondidas”. É o seguinte: você pode discordar de projetos do governo Temer, como a reforma trabalhista, mas esses não foram aprovados sem discussão no Congresso. E um presidente, quando assume, não pode simplesmente revogar leis à base de canetadas. Afinal, também não seria isso uma forma de golpismo?
Revogar as leis?!? (2)
Discursando ao lado de Lula, o presidente nacional da CUT, Vagner Freitas, defendeu que, se o petista for eleito em 2018, promova um “referendo revogatório” das medidas propostas por Temer e aprovadas no Congresso.
O que deu em Nunes?
O deputado Nunes (PT) foi membro da base do governo PH na Assembleia Legislativa, sua corrente interna (a CNB) teve cargos na máquina estadual e defendeu a permanência do PT no governo, durante a convenção do partido no último mês de maio. Mas ontem, empolgado pela militância, gritou: “Fora, Paulo Hartung” do alto do palanque.
Quanto a Coser…
A sonora vaia de boa parte dos militantes a João Coser durante o discurso do presidente regional do PT foi constrangedora. O motivo: justamente a aliança de Coser com o governador Paulo Hartung (do PMDB e considerado golpista pelas bases do partido) e a posição dele a favor da manutenção da aliança, durante a convenção estadual da legenda em maio.
Divisão total
Em tempo: a tese de Coser foi derrotada, o PT, pelo menos formalmente, desembarcou do governo de Hartung, e hoje Coser tem afirmado que não há chance de coligação com o PMDB no Espírito Santo em 2018. Mas as vaias indicam claramente que, embora unido em torno de Lula na eleição presidencial, o PT no Espírito Santo ainda é um vaso rachado.