Abusos em Hollywood: podemos separar o artista de sua obra?
É possível consumir as obras dos acusados de assédio sem pensar no que eles fizeram?
Tudo teve início com Harvey Weinsten. No início do último mês, o produtor e mandachuva de Hollywood foi acusado por mais de uma centena de mulheres de tê-las assediado sexualmente, entra elas nomes como Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow. Três delas, inclusive, afirmam que o cofundador da Miramax – empresa responsável por lançar filmes como “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni; e “Pulp Fiction”, obra-prima de Quentin Tarantino – as estuprou.
De lá pra cá, o que se viu nos noticiários foi uma avalanche de casos envolvendo outros produtores, atores e diretores. Nomes como Kevin Spacey, Lars Von Trier e Dustin Hoffman fazem parte da lamentavelmente extensa lista. O “New York Times” tem até atualizado uma página conforme novos casos surgem – até o fechamento desta edição, 30 nomes estão listados.
Com toda essa situação, uma dúvida paira no ar: há como dissociar as condutas desses profissionais de suas obras? Por exemplo: teremos tranquilidade ao assistir “House of Cards” depois de termos conhecimento das denúncias envolvendo Kevin Spacey? Ou “Manchester à Beira-Mar”, que rendeu o Oscar de Melhor Ator a Casey Affleck este ano e jogou para baixo do tapete as duas acusações de assédio que ele carrega? As opiniões são diversas.
DISTINÇÃO
A universitária Maria Eugênia Gonçalves, por exemplo, acredita que está cada vez mais difícil fazer essa distinção. “A arte, muitas vezes, acaba sendo influenciada pelas vivências daquela pessoa que a criou. Assim como ela pode ser um reflexo da visão de mundo da pessoa que está por trás daquilo”, opina ela, utilizando como exemplos o diretor Woody Allen, acusado pela ex-esposa de pedofilia, e o comediante Louis C.K., mais uma figura pública envolvida em recentes casos de abusos.
Eu costumo relativizar a obra do autor. Mas vi pessoas que colocam que não vão ver mais o filme de tal cara e acho isso respeitável
A editora de vídeos Natália Nonato também acredita que não se deve separar a obra do autor. “Se uma pessoa que abusa e violenta outras continua ganhando milhões, sendo famosa e admirada, a mensagem que fica é que o dinheiro é mais importante que qualquer coisa. E enquanto ela continua fazendo dinheiro, pouco importa o que ela faz na vida pessoal”.
RELATIVIZAR
Por outro lado, a professora do Curso de Comunicação da Ufes Daniela Zanetti acredita que há como discernir as coisas. “Faço um pouco essa separação: não vou boicotar uma obra se ela traz algo que me agrada”, afirma ela, mas diz que para isso, leva algumas coisas em conta.
“Em primeiro lugar, temos que relativizar”, pondera. “O (escritor) peruano Mario Vargas Llosa, por exemplo. Gosto do trabalho dele, mas não concordo com suas posições políticas. Eu consigo separar a menos que seja algo brutal. Mesmo assim, aquela obra é outra coisa. A obra é uma representação, não é a realidade”, opina Daniela.
Voltando à questão dos assédios, será que as obras não refletem as condutas de quem cometeu esses crimes? “Óbvio que tem uma interferência”, pontua a professora. “Mas a obra pode dizer coisas perversas, e o diretor ou criador ser alguém pacífico. Ela pode não corresponder ao que a pessoa é”, garante.
Embora as opiniões sejam contrárias, todas as mulheres concordam sobre a importância desses casos terem finalmente ganhado a luz do dia. “Especialmente porque já começamos a ver algumas consequências, com abusadores sendo afastados de seus projetos e manchados na indústria”, destaca Maria Eugênia.
“Há um lado positivo (nas denúncias). Creio que surja uma empatia tanto das vítimas entre em si quanto do público com as vítimas”, reforça Natália Nonato. “Isso tem que ser colocado às claras. Normalmente, nós, mulheres, somos sempre culpadas e desvalorizadas”, pontua Daniela.
E o futuro de Hollywood? A partir de agora as coisas serão diferentes? “Espero que realmente mude com o tempo, mas tem de ser algo permanente”, conclui a professora da Ufes.
"Estamos todas comemorando", diz cineasta
Há sete anos em Los Angeles, nos Estados Unidos, a cineasta paulistana de nascimento, e capixaba por opção, Gabriela Egito conta que há um clima “festivo” em Hollywood com a divulgação de casos de abusos sexuais de grandes figurões da indústria cinematográfica e da TV.
Claro, é de se lamentar que um incontável número de mulheres tenham passado (e continuem passando) por isso – a comemoração a que se refere Gabriela está no sentido de que finalmente essas crimes – muitos deles conhecidos há décadas, mas nunca investigados a fundo – estão vindo à tona.
“Está todo mundo comemorando”, conta ela. “Principalmente as mulheres. As coisas por que passamos por aqui... Eu nunca fui assediada aqui. Mas há muito machismo”, compartilha ela.
“Para a gente é ótimo. Finalmente as empresas estão tomando atitudes. Se o Harvey (Weinstein) serviu para algo, foi para isso: despertar essa discussão. Uma discussão que não havia surgido até agora”, diz a diretora de “Coisado” (2011).
RELAÇÃO DE PODER
Mas por que esses casos , mesmo que expostos, nunca iam à frente? “O cara que é famoso diz que não fez. A mulher fica a ver navios porque é difícil de provar e há todo esse estigma em cima dela”, relata Gabriela. “Até então temos sido vítimas duplamente: porque se você não fizer as vontades do cara que detém o poder, você perde oportunidades profissionais; e se você ainda por cima denunciar o assédio, as consequências são ainda piores.”, diz ela sobre como funcionava, até então, a lógica que encobria esses crimes. A atriz Rose McGowan, uma das primeiras a sair contra Weinstein, por exemplo, passou anos na “lista negra” de Hollywood.
Os casos do Harvey Weinstein ajudaram as pessoas se darem conta de que estavam no esquema de ‘deixa disso’ ou que ‘a mulher procurou
REFLEXOS
Para o pesquisador e crítico cinematográfico André Dib, a repercussão não se limita a Hollywood. “Percebemos aqui no Brasil, como no caso do ator José Mayer, por exemplo”, relembra ele.
André acredita que esses crimes botam em pauta também a questão da lógica hollywoodiana. “Há uma concentração de poder muito grande nas mãos de poucas pessoas”, afirma ele, citando o caso do ator Kevin Spacey, que além de protagonizar “House of Cards”, também assina como produtor executivo da série – vale lembrar que o que trouxe à tona o comportamento de Spacey foi uma denúncia do ator Anthony Rapp acerca um caso ocorrido em 1986.
“Essa concentração deveria ser combatida. O poder na sociedade deveria ser mais fluido. Deveríamos sempre questionar porque uma pessoa detém tanto poder sobre as outras”, reflete André Dib.
Outra questão a ser debatida, segundo Gabriela, é a maneira como a indústria do cinema reflete uma visão masculina de mundo. “Os filmes são centrados no homem, nos problemas e nos sonhos dele”, opina. “A mulher é vista como objeto de desejo. E isso acontece quando os homens detém os meios de produção”, completa Egito.