Greve da PM: seis meses depois
Metade dos mortos durante a greve da PM não respondia por crimes
Metade dos mortos durante a greve da PM não respondia por crimes
Luziene de Lourdes Oliveira da Conceição, de 40 anos, acordou com um aperto no peito, mal-estar e a sensação de que algo iria acontecer.
Naquela noite, ela sonhou que um dos filhos havia morrido. Pela manhã, encontrou o filho Luciano da Conceição Lima, de 21 anos, e pediu a ele para que tomasse cuidado. Horas depois, o que era apenas pressentimento de mãe se tornara realidade. Luciano e um amigo foram assassinados no bairro Conquista, em Vitória, no dia 5 de fevereiro deste ano.
“Não é possível descrever a dor de mãe. Ela nunca passa, choro todos os dias. Eu não sei o que aconteceu porque os dois eram pessoas boas. Os dois morreram inocentes, isso eu tenho certeza”, desabafa.
Luciano e o amigo fazem parte das vítimas que foram assassinadas durante a greve da Polícia Militar no Estado, em fevereiro, julgados e condenados em tempo real nos “tribunais” da internet. “Só morreu bandido.” “Deixa eles se matarem.” Frases como essas se tornaram comuns, principalmente quando acompanhadas de imagens de corpos ensanguentados estirados no chão.
Os números mostram que o cenário real é diferente do projetado no imaginário social: metade das vítimas nunca tinha sido condenada por praticar crimes. Dos 192 nomes identificados pela reportagem que morreram na greve, 94 tinham alguma condenação ou respondiam na Justiça por algum crime quando morreram.
Esse número equivale a 48,9% das pessoas que perderam a vida de forma violenta durante a greve. Os outros 51,1% não tinham processos na Justiça. Ainda assim, eles foram assassinados e sumariamente julgados por muitos que assistiam de dentro de casa o caos tomar conta do Estado.
MAIS MORTES
Os dados foram obtidos com exclusividade por A GAZETA após três meses de investigação. A pesquisa também apontou que mais pessoas morreram em fevereiro. Ao final da greve, que ocorreu de 4 a 25 de fevereiro deste ano, a contagem era de 200 homicídios, com base em dados do Sindicato dos Policiais Civis que divulgava os dados todos os dias durante a paralisação. Depois, o Ministério Público Estadual recalculou o número para 210. Mas após um trabalho de cruzamento de dados da reportagem, a conclusão foi de que houve 219 mortes, incluindo casos de latrocínio, balas perdidas e confrontos com a polícia. Nos dados coletados, também foram consideradas as vítimas que deram entrada no Departamento Médico Legal (DML) no dia 26 de fevereiro, uma vez que os corpos levavam muito mais tempo para serem recolhidos.
ESTADO DE SÍTIO
Durante a paralisação da PM, o Espírito Santo esteve sitiado. Por todo o Estado, os capixabas ficaram reféns da insegurança. Nas portas dos batalhões, esposas e amigos de policiais militares bloqueavam a saída das viaturas e dos agentes.
Sem policiamento nas ruas, o massacre teve início. No sábado, 4, primeiro dia da greve, oito pessoas foram assassinadas. Mas a segunda-feira, 6, foi o dia mais sangrento, com 41 mortes.
No Departamento Médico Legal (DML) de Vitória, as 15 geladeiras se encheram rapidamente e os corpos começaram a se empilhar pelo chão. Foi preciso uma força-tarefa de peritos para identificar todos eles. Nos cemitérios, os coveiros relataram enterros sucessivos. Teve família que precisou cavar o buraco no chão para conseguir enterrar seus parentes.
Além dos assassinatos, uma onda de arrombamentos, saques e assaltos também se espalhou na Grande Vitória e no interior do Estado. A cena de centenas de pessoas saqueando lojas escandalizou os capixabas e o resto do país. Parecia que a ordem nunca mais retornaria ao Estado.
Para tentar manter a presença nas ruas, o governo estadual pediu ajuda do Exército e da Força Nacional. A chamada “Operação Capixaba” começou no dia 6 de fevereiro. Ao todo, 3.169 homens das Forças Armadas, sendo 2.637 do Exército, 382 da Marinha e 150 da Força Aérea, além de 287 militares da Força Nacional patrulharam esquinas, rodovias e coletivos.
Em uma das operações das Forças Armadas em Cariacica, Matheus Martins da Silva, 17, acabou morto. “Ele saiu da casa da tia porque achou que a rua estaria segura com a chegada do Exército. Não houve troca de tiros como falaram, ele estava apenas com a chave de casa no bolso. Se tivesse troca de tiros eles teriam recolhido a arma para falar que era vagabundo”, desabafou Tadeu (nome fictício), um parente da vítima.
Matheus era jovem mas tinha a responsabilidade de um adulto. Estudava de noite para conseguir fazer bicos, arrumava a casa, cozinhava e cuidava do pai há sete anos diagnosticado com uma doença degenerativa no sistema nervoso. “Ele era as mãos e os pés do pai. Tudo era ele: banheiro, banho, barba e cabelo”, lembra Tadeu.
DITADURA MILITAR
As vítimas que morreram durante a greve eram as de sempre: homens jovens, negros e moradores de periferia. Mas além dos homicídios, divulgados pelos órgãos governamentais como a Secretaria de Segurança Pública e o Ministério Público Estadual, o período deixou outras vítimas.
O número de assassinatos em fevereiro é maior do que o de pessoas mortas em execuções ou decorrente de tortura durante os 21 anos da Ditadura Militar em todo o país - de 1964 a 1985. Segundo relatório da Comissão da Verdade, de 2014, houve 191 assassinatos nesses moldes durante o período. Os dados de mortes ocorridas durante o período levantados pela reportagem mostram que, além dos casos tratados como homicídios, há também duas mortes em confronto com a polícia, sendo uma delas de um menino de 13 anos.
Há também quatro mortes caracterizadas como “tentativa de roubo com morte do agente” e uma registrada como latrocínio. Balas perdidas também tiraram uma vida, a de um menino de apenas sete anos. Há ainda um rapaz de 18 anos, assassinado com um tiro na cabeça em Linhares, mas cuja morte não aparece nas tabelas a que a reportagem teve acesso. Além dos casos com tipo de crime especificado, há os registrados como “transporte de cadáver”, em que a causa é espancamento.
Durante o mês de fevereiro, os números de mortes sequer foram divulgados pelos órgãos oficiais. Os dados noticiados pela imprensa vinham de levantamentos feitos pelo Sindicato dos Policiais Civis do Estado. No entanto, a partir do dia 13, os nomes pararam de chegar para o sindicato, que então começou a receber apenas números.
“Não conseguimos atualizar porque começaram a impedir que as informações fossem divulgadas. Nós fomos vedados in loco também, passamos a ter acesso só aos números brutos. Fizemos um trabalho junto ao DML, famílias, Ciodes e Divisão de Homicídios, mas proibiram os policiais de passar para a gente. Os números divulgados eram os que eu consegui na ocasião, mas suspeitava que pudesse ser maior”, afirma o presidente do Sindipol, Jorge Emílio.
Greve da PM: seis meses depois
Vítimas são jovens negros ou pardos e moradores da periferia
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Greve da PM: seis meses depois
Mães de mortos durante a greve da PM temem ser vítimas de crimes
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Além do sofrimento, mães dos mortos na greve convivem com o temor de também serem vítimas de algum crime
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Greve da PM deixou prejuízo bilionário na economia do Espírito Santo
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Indústria, comércio e setor de serviços perderam mais de R$ 2,1 bilhões durante a greve da PM
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"Parecia um cenário de guerra", diz policial civil sobre o DML
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Parecia um cenário de guerra: geladeiras lotadas e cadáveres espalhados por todos os cantos
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Greve da PM: seis meses depois
Sede da Rede Gazeta foi alvo de tiros na greve da PM
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Quatro tiros acertaram a vidraça do auditório no dia 9 de fevereiro, ninguém se feriu. Investigações ainda não foram concluídas. Equipes de reportagem também foram agredidas e ameaçadas ao cobrir a paralisação
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Greve da PM: seis meses depois
"Dificilmente todos os crimes serão elucidados", afirma MPES
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O promotor Pedro Ivo Sousa, chefe da força-tarefa que investiga os casos, admite que muitos crimes ocorridos durante a greve da PM continuarão sem solução
Se o clamor por justiça é algo unânime entre as famílias das vítimas durante a paralisação da Polícia Militar, o percentual de punição desses crimes joga um balde de água fria nesse desejo. No Espírito Santo, de 20 a 25% dos casos de homicídios são solucionados. Apesar de pequena, essa média é 15% maior que a nacional, segundo a Polícia Civil.
Durante os 22 dias de greve, o Ministério Público apontou que morreram 210 pessoas vítimas de homicídio. O órgão ofereceu 41 denúncias por esse tipo de crime. Houve ainda 11 representações contra menores de idade.
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No entanto, muitos assassinatos podem continuar sem resposta. É o que afirma o coordenador da força-tarefa, que investiga os crimes praticados durante a paralisação da Polícia Militar, o promotor de Justiça, Pedro Ivo Sousa.
“Era um período sem policiamento e bem complicado, nós vamos investigar, mas sabemos a realidade que dificilmente vamos conseguir elucidar todos. Quanto mais tempo vai passando, vai diminuindo a porcentagem de solução dos crimes. A gente conseguiu denunciar 25% dos casos, mas se vai dobrar, aumentar 10% eu não sei falar, mas resolver 100% é difícil”, afirma.
O promotor acrescenta que cerca de 600 pessoas deram entrada no sistema prisional durante a greve por diversos crimes, algumas por homicídio. “A normalidade é concluir os casos que têm a autoria bem definida. Independentemente disso, as equipes estão trabalhando e acho que a gente vai continuar tendo solução”, acrescenta.
ESTRUTURA
De acordo com o presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Espírito Santo (Sindipol), Jorge Emílio Leal, falta estrutura para que todas as mortes possam ser investigadas. “Não existem condições estruturais para se apurar os crimes. A demanda da Polícia Civil, que já era alta, quadruplicou e falta mão de obra, viaturas, estrutura. Há ausência de investimentos, ausência de concurso público e de estruturação das unidades policiais por parte do governo. A polícia vem sofrendo uma desidratação ao longo de décadas e isso que se agravou nos últimos anos”, diz.
Ele afirma que a Polícia Civil dará prioridade na apuração de algumas mortes. “Serão apuradas num sistema de priorização, ou seja, se prioriza conforme a repercussão gerada na mídia, o poder econômico da vítima e a influência política. Os crimes cometidos contra o cidadão comum não se apuram, viram estatística e vão para o arquivo”, diz.
As investigações ainda estão acontecendo na Grande Vitória, mas nenhuma confirmou a autoria plena do envolvimento de policiais nas mortes de fevereiro
Já o chefe da Polícia Civil, Guilherme Daré, confirma que as circunstâncias em que a greve ocorreu tornam mais difícil a descoberta de provas. No entanto, ele garante que os homicídios ocorridos durante a greve da PM serão investigados. Mas pontua que os inquéritos serão resolvidos com cautela. O trabalho está sendo feito de forma integrada com a PM e com o MPES e a Justiça estadual.
“Os homicídios deixaram poucas prova Não havia gente na rua para testemunhar e também havia poucas evidências. A PM não ajudava na preservação das provas nos locais dos crimes e a Polícia Civil demorava no atendimento das ocorrências devido ao número de ligações, muitas eram trotes”, conclui.
FAMÍLIA DO NORTE TEVE QUE ABRIR COVA
Se já não bastasse o sofrimento de enterrar um parente, familiares de um agricultor do Norte do Estado ainda passaram pelo constrangimento de terem - eles mesmos - que abrir a cova do familiar no cemitério da cidade. O nome do município foi omitido a pedido da própria família.
No dia do enterro, no segundo domingo de paralisação das atividades da PM no Espírito Santo, as únicas covas abertas estavam próximas a um brejo no cemitério.
“É uma região baixa, brejo mesmo, onde o rio passa. Em período de muita chuva alaga. Uma falta de respeito com quem passou a vida pagando imposto e não tem um local decente para ser enterrado”, lamenta o irmão do agricultor, que pediu para não ser identificado.
Como não tinha coveiro para abrir outras covas, as que estavam abertas eram as opções. Mas a família se recusou a sepultar o parente perto do rio. O que restou para o irmão, tios e primos da vítima foi pegar ferramentas em casa para furar a terra em um local mais digno do cemitério. “É constrangedor, né? Mas vamos fazer o quê? Não tinha funcionário para fazer isso, não dava para esperar até segunda-feira e ninguém quer enterrar um parente em local de brejo. Minha mãe, idosa, mal conseguia descer lá”, lamenta o irmão.
O agricultor foi morto com oito tiros também no Norte do Estado. Ele tinha ido de moto levar um amigo a uma cidade vizinha a dele, quando foi surpreendido por um criminoso. O amigo dele foi baleado na perna e sobreviveu. A família ainda não sabe se o que houve foi assalto ou briga, apesar de desconhecer qualquer inimizade do agricultor.
Assim como tantos outros casos, essa pergunta segue sem resposta. Resposta que a própria família já desistiu de buscar. “Minha mãe pediu para não mexer mais com isso. E eu não acredito na Justiça do nosso país porque não existe Justiça para pobre. Para o pobre, a Justiça é só para condenar, não é para defender.”
Greve da PM: seis meses depois
Greve da PM: advogada diz que adolescentes foram vítimas de extermínio
Greve da PM: advogada diz que adolescentes foram vítimas de extermínio
58% dos adolescentes que morreram durante a greve respondiam na Justiça por ato infracional
“O que aconteceu foi um extermínio. Eles aproveitaram que não tinha polícia para fazer um tipo de ‘limpeza’”, denuncia a advogada criminalista Danielly Penedo Wandekoken. Ela refere-se aos dados levantados pelo Gazeta Online, que apontam que dos 36 adolescentes - entre 13 e 18 anos - que morreram durante a greve, 21 respondiam na Justiça por algum ato infracional ou tinha passado pelo sistema socioeducativo. Esse número corresponde a 58% do total.
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Danielly e a também advogada Raianny dos Santos acreditam que as mortes tenham a ver com acerto de contas do tráfico de drogas. Segundo elas, a maioria dos jovens dá entrada no sistema por atos infracionais relacionados às drogas.
“Esse tipo de acerto de contas acontece sempre. Por isso, algumas famílias preferem que os adolescentes fiquem presos, pedem para o juiz não soltar. Elas temem que, fora do sistema, os filhos sejam mortos na rua”, relata a advogada.
Segundo o coordenador do núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado, Hugo Matias, os adolescentes mortos estavam em situação de vulnerabilidade. “Os adolescentes e jovens ligados ao sistema socioeducativo geralmente vêm de uma situação socioeconômica bem delicada, por vezes fora da escola e sem perspectiva de inserção no mercado de trabalho. Eles acabam sendo facilmente atraídos para atividades ilícitas. Assim, estão naturalmente expostos a situações de vulnerabilidade.”
ELO FRACO
“Dentro do tráfico, o adolescente é o elo mais fraco. Ele é o que entrega a droga, se expõe, ele é o que fica menos tempo preso. Eles são a linha de frente”, explica Raianny dos Santos.
A advogada afirma ainda que, mesmo que o número de mortes tenha sido alto, a perda dos adolescentes não faz falta para o tráfico e, portanto, a morte deles não representa melhoria na segurança geral da população. “Esse extermínio não acaba com o tráfico de maneira nenhuma. Não houve perda para os criminosos, eles só devem ter se reestruturado. Os que morreram foram os de baixo. O problema ficou”, conclui.
Segundo os últimos dados do Índice de Homicídio de Adolescentes, o Espírito Santo é o quarto Estado da federação com maior índice de mortes violentas de adolescentes. Dentre os municípios do Brasil com mais de 200 mil habitantes, Cariacica e Serra aparecem em segundo e terceiro lugar, respectivamente. Vila Velha aparece em décimo lugar.
Greve da PM: seis meses depois
Mães buscam explicações para os assassinatos de seus filhos
Mães buscam explicações para os assassinatos de seus filhos
Seis de fevereiro de 2017. Rosenei Vieira, de 40 anos, estava na casa de uma amiga quando soube da notícia: um homem que estava morto poderia ser o filho dela, David Vieira Pereira, 21 anos. O jovem havia ido durante a madrugada ao Morro do Meio, há dois quilômetros de onde morava em Cariacica, para saber notícias de um amigo que havia morrido minutos antes. Enquanto ainda estava no caminho, David foi morto com um tiro nas costas por duas pessoas que se identificaram como policiais militares. Ele estava de moto com um outro amigo.
“Chegando lá eles (policiais civis) não deixaram eu me aproximar dele. Falaram: “a senhora não reconhece seu filho de longe?”. Eu falei que não, porque estava muito longe e escuro. Mandaram eu ir embora porque estava tendo troca de tiros. Foi muito angustiante voltar para casa sem saber se era ele. Só consegui encontrá-lo novamente no Departamento Médico Legal (DML) para a liberação do corpo”, lamenta Rosenei.
Espero todo dia, como se ele fosse chegar para eu poder ir dormir. É um vazio, porque sei que ele não vai chegar
Rosenei, Sirleide, Luziene, Sheila, Tatiana, Teresa, Lúcia, Cláudia... Em comum, elas carregam o drama de terem perdido seus filhos durante os 22 dias de paralisação da Polícia Militar no mês mais sangrento da história capixaba. Assim como centenas de outras, elas são as mães de fevereiro.
Foram 219 mortes por homicídio, latrocínio, bala perdida e confrontos com a polícia. Mais da metade das vítimas nunca tinha sido condenada por praticar crimes. Dos 192 mortos durante a greve que foram identificados pela reportagem, 94 tinham alguma condenação ou respondiam na Justiça por algum crime quando morreram.
No fevereiro sangrento, a cada quatro horas uma mulher chorava a morte do filho. Principalmente mães de jovens, negros e pobres. Para contar as histórias que estão por trás das vítimas, a reportagem foi em busca delas, as mulheres que precisaram encarar a dor e a angústia de enterrar aqueles a quem deram à luz.
Das 38 mães procuradas pela reportagem, 14 aceitaram contar suas histórias, ou pediram a parentes que o fizessem. Algumas na condição de ficarem anônimas, outras preferiram encontrar com os repórteres em lugares em que ninguém as conhecesse ou até mesmo conversar por telefone. Elas têm medo de que algo possa acontecer com suas famílias, principalmente quando são moradoras de periferia e o filho tinha ligação com algum tipo de crime.
DEPRESSÃO
As mortes não vieram sozinhas. Junto com elas, a desestabilização das famílias que passam dificuldade para seguir suas vidas. O mais comum nessas histórias são relatos de depressão. Gente que não consegue voltar à vida normal.
A auxiliar de produção Sheila Lima Melo, de 37 anos, é mais uma entre muitas mães que choram a perda dos filhos assassinados. De fevereiro pra cá, precisou mudar de casa para tentar evitar lembranças, largou o trabalho e está em depressão, assim como o pai da vítima, Evandro Sebastião Xavier, de 42 anos.
“Eu nunca dormia antes de ele chegar, sempre por volta de meia-noite. Até hoje não consigo dormir antes do horário que ele chegava, porque é como se tivesse faltando alguém para poder fechar a porta. Eu fico esperando todo dia, como se ele fosse chegar para eu poder ir dormir. É um vazio, está faltando alguém para ir dormir”, lamenta.
O filho, Thalys Melo Xavier, tinha apenas 16 anos. Ele não havia ido trabalhar com a venda de açaí devido a paralisação da Polícia Militar. Mas saiu de casa para comprar um lanche com o irmão e um amigo para continuar jogando vídeo game. Na volta, eles se depararam com um carro, as quatro portas se abriram e os bandidos começaram a atirar neles. Thalys foi morto com sete tiros, que o atingiram no peito e na cabeça. O irmão também foi atingido com um tiro na perna.
“Só quem perdeu uma pessoa querida sabe o que eu estou passando hoje. Meu filho era maravilhoso. Família para ele era tudo. Trabalhador, estudava, era muito amigo e tinha muitos sonhos, a felicidade da casa. Foi muito injusto, muito cruel. A paralisação da Polícia Militar vai me lembrar revolta. Muita revolta”, diz.
SONHOS
Tirei as coisas do meu filho do quarto, dei uma camisa a cada uma das minhas irmãs para guardarem de recordação
Após seis meses, a rotina de algumas mães aos poucos volta ao normal, mas a dor de perder o filho continua. E junto com ela uma série de problemas de saúde que se agravaram.
“Eu já tirei as coisas dele do quarto e dei uma camisa a cada uma das minhas irmãs para elas guardarem de recordação. Está sendo muito difícil viver sem ele, Deus está me dando muita força. As lembranças que tenho são de coisas boas. Ele era muito amoroso, me beijava muito. Essa é a lembrança que eu tenho, dos beijos dele eu não consigo esquecer, muito beijo, muito beijoqueiro”, relata Rosenei.
A mãe conta que nunca foi chamada para depor na delegacia, mas espera uma solução do caso. Isso é a única coisa que deseja no momento, pois, junto com o corpo do filho, ela precisou enterrar também os sonhos dele. “Ele queria formar família, ter filhos e estava tentando entrar no mercado de trabalho”, lamenta.
Assim como Rosinei, Sheila também viu ser enterrada toda a vida que um jovem tinha pela frente. “Ele queria dar uma vida boa para toda a família, e estava ansioso para fazer 18 anos e poder tirar carteira de habilitação”, finaliza Rosenei....