Entrevista
Adriana Sales: "população trans não existe para a escola brasileira"
Mestre em Educação e doutoranda, travesti e ex-prostituta paranaense fala da importância de se estabelecer mudanças no atual modelo de ensino, capazes de agregar todos os tipos de pessoas
Antes de qualquer título acadêmico – ela é mestre em Educação e está terminando o doutorado –, Adriana Sales gosta de ressaltar que é travesti. E foi prostituta. “São palavras carregadas de estigma, preconceito e discriminação. Então, quero me marcar nesse rótulo para dar visibilidade para a gente desconstruir os estigmas que foram elaborados em cima desses termos”, diz, logo no início da nossa conversa.
Nascida em Londrina, numa família pobre, junto a outras duas irmãs, foi aos 12 anos que ela descobriu a travestilidade. Assim como acontece com a maioria das travestis, foi expulsa de casa pelo pai. Decidiu, a partir daquele momento, que a educação seria seu cabedal de salvação.
Entrou para uma universidade pública, passou num concurso de professores, cursou mestrado e está prestes a ser doutora. “Sempre acreditei na educação e percebi que, através do conhecimento, eu tinha uma moeda de troca para me manter nos lugares e acessar muitos outros”, explica. Feminista, revolucionária, determinada, Adriana fala sério, mas sem perder a ternura. Ela esteve em Vitória, onde foi palestrante. Na plateia, um auditório lotado de professores, ouvindo sua história e os possíveis caminhos para sermos uma sociedade menos preconceituosa e com oportunidades para todos. Adriana, mais do que tudo, acredita na educação.
Você é uma exceção. Uma das poucas travestis do país a cursar um mestrado. Como isso acontece?
Entro no mestrado em 2011 e nunca foi um desejo. Aconteceu e foi muito bom, me abrindo outros caminhos. E a academia cometeu um grande erro ao dar espaço para nós, travestis e transexuais (diz, em tom de ironia). Há 20 anos a academia falava sobre a gente. Quando começamos a nos organizar como coletivo, e ela percebe a nossa força intelecto e teórica, começa a chamar a gente para falar com ela. E de 10 anos para cá, como temos acessado este universo acadêmico, falamos por nós próprias. Agora não tem mais volta, porque temos mais de cinco travestis doutoras, outras no mestrado e muitas querendo entrar na universidade, vide a procura pelo Enem. Abrimos a porta e não tem retorno. A academia terá de engolir que essas pessoas existem.
Você sempre foi bem aceita no universo acadêmico?
Nunca. Nenhuma travesti é bem aceita e bem-vinda em lugar nenhum. Nós somos resistentes. Não somos bem-vindas em lugar nenhum, mas encontramos parceiros. Alguns pesquisadores – ou de qualquer outra profissão –, que fazem parte de um grupo muito restrito, têm um feeling voltado ao direito das pessoas, à diversidade e ao respeito. Eles têm produzido muita coisa sobre a transexualidade e a travestilidade.
Qual o tema de sua pesquisa no mestrado e no doutorado?
O tema geral trabalha com “Travesti e escola”, fazendo um mapeamento das travestis que estavam nas escolas pública de ensino médio do Mato Grosso. Fizemos um diálogo com elas, porque quando comecei tinha certeza que as travestis não queriam frequentar a escola. E eu errei feio. Porque todas as participantes mostraram que queriam estar na escola. Não naquele modelo, mas queriam. Só que a população trans não existe para a escola brasileira. Então pesquisei qual a pauta de educação que elas (travestis) querem e, no doutorado, trouxe para a psicologia.
As universidades estão abertas e preparadas para receber travestis e transexuais?
Jamais. Elas não estão abertas para travestis, transexuais, negros, pessoas quilombolas, indígenas... As escolas brasileiras estão preparadas daquela maneira que elas foram pensadas, para o filho mais velho que vai poder cursar Direito e defender o seu latifúndio. É uma escola para branco, homem e pessoas heterossexuais, totalmente misógina. A universidade brasileira precisa ser implodida. Essa escola é ineficiente e inexistente, ela está fadada à falência. Ou essas pessoas que resistem dentro deste espaço rearticulam essa escola ou seremos uma sociedade falida.
Então, para você, o modelo de educação tem de ser mudado?
Precisa ser mudado. Ou a gente muda ou vamos continuar reproduzindo pessoas que não entendem da política, da história do Brasil, do que foi a ditadura militar e a escravidão. Elas sabem decodificar, ler e escrever, mas de modo muito limitado. Ou reorganiza – o que é um currículo, a formação profissional e a formação nas universidades – ou essa escola vai continuar reproduzindo essa sociedade emburrecida.
A ocupação dos espaços do conhecimento é uma atitude política?
Totalmente. Por isso que fazemos questão de mantermos a pauta da travesti e transexual quando adentramos em qualquer espaço. Tenho observado que só o fato de existir uma travesti, uma transexual ou homem trans, um negro, que transite nesse espaço, já é um marco político. Porque é um diferente ali dentro.
Como foi a sua infância?
Sou a mais velha de três filhas de uma família estruturada, tida como padrão, mas venho da extrema pobreza, em Cuiabá, no Mato Grosso. Um infância normal até se deparar com a questão da sexualidade na escola, por volta dos 12 anos. Logo em seguida, assumo a travestilidade, meu pai me coloca para fora de casa, como acontece com qualquer outra companheira minha, e eu vou para a vida. Em momento algum eu optei por largar a escola. Eu sempre acreditei nela. Era um lugar em que me sentia bem e eu comecei a perceber que, através do conhecimento, eu tinha uma moeda de troca. Para me manter nos lugares, para acessar o emprego formal. O primeiro foi aos 13 anos, como vendedora de loja, logo em seguida fui contratada para ser professora de inglês da rede pública. Eu sempre achei que a escola era um cabedal de salvação.
E aí você passa no vestibular aos 17 anos...
Passo no primeiro vestibular que prestei, em 1995, em primeiro lugar, para o curso de Letras-Francês. Eu era apaixonada por línguas, então um grupo de amigos que conheci, da comunidade LGBT, me incentivou. Estudar em universidade pública é caro, por isso ganhei todo tipo de material e de bolsas até o final do curso, porque não tinha condições financeiras. E, quando entro na universidade, me desperta essa veia ativista do movimento LGBT, principalmente na minha pauta, porque é na universidade que eu assumo o nome social, a expressão de gênero, a travesti. Esse momento coincide de eu passar no concurso da rede de ensino do Mato Grosso. Vou me garantindo nesse lugar do qual não queria sair, que é a escola.
Nesse período, década de 90, a palavra transexual nem era citada pelas pessoas.
A própria palavra travesti me assustava. Até hoje a palavra travesti é carregada de estigma, preconceito e discriminação. Tudo que não presta está ali. Ao mesmo tempo, fui me encantando por tudo isso que ‘não presta’. Aonde tem sujeira e marginalidade, é onde eu quero estar. Não quero ser capturada pelo embranquecimento social, pela misoginia e pelo falocentrismo. Faço questão de, no meu currículo, colocar que sou professora. Mas, antes de qualquer tipo de título acadêmico, sou travesti. E puta. Outro estigma que carrego, mesmo não atuando mais. Quero me marcar nesse rótulo para dar visibilidade para a gente desconstruir os estigmas que foram elaboradas em cima desses termos.
Assim que você termina a graduação você vai para Paris. O que você vai fazer lá?
Eu ganhei uma bolsa de especialização, junto a outras sete pessoas do Brasil, para três meses, mas acabo ficando um ano. E aí eu viro puta de verdade, porque precisava saber o que era. Todas as minhas amigas eram, só eu que não. Só eu era professora, só eu frequentava aquele espaço, eu queria saber o porquê. Durante esse tempo, conheço um ativismo muito forte na Europa e, quando eu volto para o Brasil, meu voo tinha uma escala no Rio de Janeiro, onde eu decido ficar por mais um ano. Depois, como estava prestes a perder o meu concurso de professora, volto para o meu Estado, porque protelei dois anos e meio para tomar posse.
O que sua experiência como prostituta ensina a respeito do universo masculino?
Me dá mais subsídio para ser feminista. Assumir este lugar, não só por ter passado por ele, é me assumir uma travesti feminista que reconhece um feminismo que agrega, que respeita o direito das mulheres e de todos os tipos de feminilidade, não somente este tipo vaginizado. E sempre levantando essa bandeira contra esse padrão, essa norma universalista que é falocêntrica. Não sou contra os homens e amo ter masculinidade no meu corpo.
Quem é o homem que procura pelo serviço das travestis?
É o mesmo homem que mata. O Brasil hoje é, no globo, o que mais acessa sites de conteúdo erótico com travestis e transexuais. Mas também é o país que mais mata travestis com requintes de crueldade. Então o mesmo homem que me procura na virtualidade é o que me assassina na esquina. É um paradoxo que precisa se enfrentado. A maioria de nós morre simplesmente por ser travesti.
Você bagunça muito a cabeça das pessoas, sendo uma travesti com doutorado?
Eu corro risco de morte todos os dias. Gosto muito do conceito de parresía, de Michel Foucault (filósofo francês), que é a pessoa que sabe que está correndo risco de vida, que a luta dela pode, em contrapartida, encontrar um assassinato, mas ela não desiste. As travestis são parresíastas. É preciso que exista esse embaralhamento na cabeça das pessoas, para que elas enxerguem outras possibilidades de ser. As pessoas não podem tutelar meu corpo e minha sexualidade, o que eu faço com ela no dia a dia só diz respeito a mim.