Toda vez que eram perguntados se eram pescadores, a resposta afirmativa vinha acompanhada de um “sim, profissionais”, numa tentativa de reafirmar o que o desastre e o tratamento que vêm recebendo desde então lhes é negado.
Gente que tinha no Rio Doce o seu senso de comunidade, seu sentido social e sustento econômico. Dois anos depois do rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais, nos locais que antes eram tradicionais vilas de pescadores, acumulam-se histórias de trabalhadores que refugiam-se naquilo que se apresenta mais acessível, a bebida e o vício.
“Aqui em Mascarenhas, esse problema de alcoolismo e depressão pegou quase todo mundo. Alcoolismo e droga”, resume Adroaldo Gonçalves Filho, o Tatati, 59 anos, um dos moradores de Mascarenhas, vila de pescadores de Baixo Guandu, também atingida pela lama de rejeitos de minério da Samarco.
“De primeiro chegava ali no rio, e era gente tomando banho, fazendo piquenique, correndo nessas areias. Mudou a vida, a rotina, completamente”, lamenta Tatati.
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Em Regência, Linhares, os relatos se repetem. “Hoje o pescador vai ali, recebe o cartão (da Samarco), faz uma compra. Se sobra algum troquinho, vai para porta da venda comprar a cachaça dele porque não tem um serviço para tomar o tempo”, diz Leone Carlos, 70 anos, presidente da Associação de Pescadores de Regência (Asper).
“O cara do supermercado me contou que só tem movimento quando recebe o dinheiro do cartão. Acabou aquele dinheiro, muitos ficam na porta do supermercado sem ter o que fazer”, relata Leone.
A situação não é incomum em comunidades que tiveram sua estrutura e costumes descaracterizados. “Aquela rotina que fazia sentido para aquelas pessoas é abruptamente interrompida”, avalia o sociólogo e cientista político Rodrigo Augusto Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“O trabalho não tem uma dimensão meramente econômica. Ele cria laços. O trabalho é um elemento agregador de solidariedade. As relações sociais foram quebradas”, completa o professor.
Hoje os atingidos sobrevivem com um auxílio mensal pago pela Samarco por meio de um cartão. O valor é de um salário mínimo mais 20% para cada dependente.
O DESASTRE
Bastava uma morte para ser, por si só, lamentável. Mas foram 19 as vítimas fatais daquele 5 de novembro de 2015. A enxurrada de lama, 32 milhões de metros cúbcos de rejeitos de minério, destruiu os distritos rurais de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, e seguiu por 500 quilômetros adentro pelo Rio Doce, causando todo tipo de transtorno, caos e morte da biodiversidade aquática e ribeirinha pelas cidades que cortou. Atingiu a foz, em Regência, 17 dias depois do início da catástrofe ambiental.
Na época, embora obviamente indignados, moradores e pescadores tinham fé de que em poucos meses a situação se normalizaria e a pesca voltaria a fazer parte da rotina. Hoje, ainda que a fé permaneça, a avaliação é mais realista. “Nós vamos ficar do jeito que estamos, de pés e mãos quebrados, sem poder pescar, comer e vender”, lamenta Leone.
DOENÇAS NO CORPO E NA ALMA
Só com muito estudo se poderá confirmar, mas a experiência pessoal e os relatos populares dão como certos que o desastre com a lama de rejeitos da Samarco adoeceu alma e corpo de quem antes tinha no Rio Doce o seu sustento, sua fonte de lazer e seu sentido de vida.
“Agora está pior. Antes tinha lazer, você podia pescar. Fiquei até doente. Acostumada a ir lá de dia, de tarde. Agora tenho veia entupida, pressão alta. Antes não tomava remédio nenhum”, relata a pescadora Edite Thomé de Paula, 66 anos, moradora de Mascarenhas, em Baixo Guandu. Ela já teve que passar por cirurgias no coração por causa dos problemas recém-desenvolvidos.
O pescador Tatati, em sua simplicidade, associou à depressão o momento de profunda tristeza e desânimo pelo qual passou nos momentos posteriores à tragédia.
“Comecei a ficar depressivo”, afirma. Ele diz que se salvou graças ao empenho de um amigo, um compadre, que o tirava de casa. “E botei um barco na água e ia lá embaixo e voltava. Isso foi ajudando a espairecer”, diz Tatati, morador de Mascarenhas, em Baixo Guandu. Ele relata que o próprio compadre que o ajudou também passou pela fase depressiva. E que, igualmente, hoje se esforça para superá-la.
A pescadora Monique Rodrigues dos Santos César, 31 anos, também conta o que vê entre os amigos. “Tenho uma vizinha que está com manchas pelo corpo todo. Tem crianças com manchas.”
“A comunidade era conhecida como de pescadores. Se não tem pesca, acabou com tudo. Nem todos recebem auxílio. Muitos viram alcoólatras”, reforça Monique.
O sociólogo Rodrigo Augusto Prando diz que o surgimento de doenças, ligadas ou não ao consumo da água, é um fenômeno sociológico nesses locais. “É uma reação coletiva aos problemas enfrentados”, diz o também cientista político.
A psicóloga Tammy Andrade, membro do Conselho Regional de Psicologia (CRP-16), também confirma não serem raros relatos como os dados nas vilas de pescadores atingidas pelo desastre da lama da Samarco.
“É muito comum. É um processo de luto. Até dos mínimos detalhes é preciso fazer luto. Pode ser luto da mudança da rotina ou da perda de objetos da casa”, diz a psicóloga.
O caminho do luto costuma passar, primeiro, pela fase de negação, como uma forma de defesa para não lidar com a situação. Depois, raiva. Em seguida, a fase da “negociação”, em que a pessoa tenta voltar ao que era antes. Depois vem a fase depressiva e, por fim, aceitação.
“Mas é comum as pessoas pararem na fase da raiva e da depressão”, reconhece a psicóloga.
O pescador Tatati passou por alguns desses momentos. “A gente agora já se habituou em outro clima. Mas que é triste é.”
SOLUÇÕES
“A equipe não pode se limitar ao tratamento individual. Não adianta só o tratamento psicológico. Antropólogos e sociólogos podem fazer pesquisas com essas pessoas para saber o que realmente sentem”, diz o sociólogo.
Ou seja, o caminho, aí, é multifacetado, e depende do empenho de várias frentes, segundo especialistas, para dar um novo sentido a essas populações.
CIDADES DE LONGE TAMBÉM SÃO AFETADAS
A lama da Samarco impactou muito mais, no Estado, que as cidades de Baixo Guandu, Colatina e Linhares. O desastre foi de tal grandeza que atingiu municípios ao longo da costa do Espírito Santo e, por consequência, suas comunidades que sempre viveram de maneira humilde.
“A costa do Espírito Santo está toda contaminada. As comunidades estão passando por insegurança alimentar”, diz a professora Simone Raquel Batista Ferreira, professora de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenadora do projeto de Extensão e Pesquisa Observatório dos Conflitos no Campo.
Mapeamento feito pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) confirma isso. A área entre a Serra e a divisa com a Bahia foi atingida. As principais comunidades pesqueiras identificadas foram: Nova Almeida, de Rio Preto a Barra do Sahy, Barra do Riacho, Regência, Povoação, Degredo, Pontal do Ipiranga, Barra Seca e Barra Nova. O mapeamento não abrange regiões no sul do Estado.
“De maio a setembro, teve muito vento sul. Então jogou a lama para o norte”, completa a professora. Ela explica que a lama que escapou pela foz do Rio Doce, em Regência, Linhares, adentrou os mangues por conta da força das marés. “Então alguns rios estão absorvendo a lama”, diz.
“Em São Mateus, além de verem peixes com feridas, as pessoas também estão com machucados na pele”, relata a professora. “E alguns poços de água também estão sendo contaminados.”
RENOVA VAI ESTUDAR SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO
A Fundação Renova, criada para a reparação dos danos do desastre, informou que “está em fase inicial de desenvolvimento de diversos estudos de saúde”. Na lista, estudos epidemiológicos, de saúde mental, de toxicologia e de risco à saúde humana.
“O estudo epidemiológico e toxicológico, com foco em toda a área impactada, analisará indicadores de saúde no horizonte de 10 anos antes e, no mínimo, 10 anos depois do rompimento da barragem de Fundão. O trabalho envolverá diversos setores e instituições da comunidade científica”, respondeu a Fundação Renova, por nota.
A Fundação Renova afirma ainda que o estudo poderá fornecer elementos sobre os indicadores de saúde da população, “mostrando se existiram ou não mudanças nesses padrões”.
A Renova é resultado de assinatura de Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTCA) entre a Samarco e outras entidades, com o governdo Federal, os Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais, e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A Prefeitura de Baixo Guandu informou que há na cidade o Centro de Atendimento Psicossocial (Caps), que atende casos desta natureza (problemas de alcoolismo e depressão), mas que não há dados específicos relacionados à localidade de Mascarenhas.O município acrescentou que tem intermediado junto à Fundação Renova/Samarco “os reclames da população relacionados ao desastre ambiental”. “O problema é mais sentido na vila de Mascarenhas, que praticamente vivia da pesca e hoje essa atividade está completamente comprometida”, confirma trecho da nota enviada pela prefeitura.
Por nota, reconheceu ainda que não há um projeto específico para ocupar moradores da vila de Mascarenhas, mas que “a prefeitura atua junto à associação de costureiras local”, “procurando dinamizar as atividades da entidade, desenvolvendo ao mesmo tempo ações ligadas ao esporte para ampliar as opções de recreação na localidade”.
O secretário de Estado de Meio Ambiente, Aladim Cerqueira, diz que o governo está “atento” à questão do alcoolismo e outras doenças. “Estamos exigindo e a Renova já está fazendo um estudo epidemiológico”, afirma o secretário Cerqueira.
Sobre outros locais, além de Baixo Guandu, Colatina e Linhares, impactados pela lama de rejeitos de minério o secretário informou que o cadastramento pela Fundação Renova de pessoas impactadas vai de Barra do Sahy a Conceição da Barra. “Estamos exigindo melhorias sobre isso”, afirma Aladim Cerqueira.
Por quase duas semanas, a Prefeitura de Linhares foi insistentemente procurada para se posicionar sobre os impactos da lama da Samarco na cidade, mas não houve retorno.
CRONOLOGIA
05/11/2015
Rompimento da barragem - Barragem de rejeitos da Samarco, em Mariana (MG), rompeu-se. Os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo foram varridos pela lama. Dezenove pessoas morreram.
22/11/2015
Lama na foz - Os rejeitos de minério da Samarco chegaram à foz do Rio Doce, localizada em Regência, Linhares, após percorrer 500 quilômetros e cortar também, no Estado, Baixo Guandu e Colatina
04/07/2017
Suspensão - A Justiça Federal suspendeu processo criminal tornou réus 22 acusados e as empresas Samarco, Vale, BHP Biliton e VogBR, considerados responsáveis pelo desastre
10/08/2017
Multas - O Ibama negou de maneira definitiva recursos da Samarco contra três multas, ao todo R$ 150 milhões, pelo desastre ambiental. A mineradora pode recorrer na Justiça
31/08/2017
Barragens - A Justiça no Espírito Santo determinou que a Samarco construa barragens com comportas para proteger os rios que abastecem o município de Linhares, para que lagoas e rios não sejam contaminados pelo Rio Doce
ANÁLISE
“O trabalho é um elemento agregador das solidariedades”
Rodrigo Augusto Prando, sociólogo
“Essa tragédia acabou atingindo várias comunidades, sobretudo as que dependiam de um trabalho. Aquela rotina que fazia sentido para aquelas pessoas é abruptamente interrompida. O trabalho é um elemento agregador das solidariedades. E o rio era uma fonte de lazer também. As relações sociais foram quebradas. O trabalho para a sociologia é uma categoria para explicar como as pessoas se relacionam. O trabalho não tem uma dimensão meramente econômica. Ele cria laços, estabelece significados.”