Adoção

Adoção, um ato de amor: eles querem uma família de presente

228 crianças esperam por um lar, enquanto 929 querem adotar. Por que essa conta não fecha?

Katilaine Chagas

Publicado em 24/12/2017 às 08h56

Thanany chora ao relatar a ligação que recebeu quando uma criança “havia caído” no seu perfil, ou seja, no momento que nasceu para ela a filha que desejava. Mas, antes disso, já tinha chorado quando contou sobre o penteado da menina no primeiro encontro das duas (“foi tão bonitinho...”) ou ainda ao citar a “nota 9” da filha ao passar de ano na escola (“ela passou direto!”). Se o nome disso não é amor, podem mandar cancelar o Natal, porque a gente por aqui não sabe outro jeito de chamar.

Adoção: um ato de amor

> Eles querem uma família de presente

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> É possível acolher sem adotar

> Quando o despreparo resulta na devolução do adotado

> O que acontece ao completar 18 anos no abrigo?

A advogada Thanany Machado Dario, 45, recebeu a notícia de que Lavinia, então com 2 anos, estava disponível para ser adotada há praticamente exatos sete anos, já que a confirmação de que a partir dali seria mãe veio poucos dias antes do Natal. “Foi o meu presente.”

Lavinia vem de um sistema de adoção cuja conta não fecha. Segundo o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 929 pretendentes a pais e mães, entre casais e pessoas solteiras, no Espírito Santo. E 228 crianças livres para serem adotadas. Ou seja, se há tantos candidatos, por que “sobram” crianças?

“O nosso problema é a questão da idade, grupo de irmãos ou criança com alguma doença ou deficiência mais incapacitante”, afirma Helerson Elias Silva, psicólogo da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), que controla as adoções no Estado e é ligado ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). Hoje a preferência é por bebês de até 2 anos de idade, com uma discreta tendência, como ressalta Helerson, para a escolha de meninas. No Estado, 87% das crianças disponíveis têm mais de 6 anos. Na lista de pretendentes, 92% aceitam abaixo de 6. “A idade é mesmo o fator que está travando”, diz Helerson.

A adoção não pode ser um ato de caridade. Tem que ser um ato de amor. Tem que ser algo que vá realizar o adotante
Renzo Gama Soares, Defensor Público

Assim como ele, a juíza Gladys Pinheiro, da 1ª Vara da Infância e Juventude da Serra, confirma que a cor da criança já não interfere tanto como já pesou em outros tempos. “Existe muito preconceito ainda, mas estamos avançando. Vejo pessoas que antigamente procuravam a questão da cor (preferência por crianças brancas). Hoje em dia é mais a idade”, diz a juíza.

Apesar de ter diminuído sua influência, o fator etnia não pode ser negado. “A mudança não está na velocidade que precisaria para resolver a questão das crianças”, diz o advogado de família José Eduardo Coelho.

CULPA

Embora a preferência de candidatos a pais e mães adotivos seja pelo perfil de crianças que hoje compõem a menor parcela das presentes em abrigos, como pode-se culpar esses pretendentes pelo tamanho da fila, quando há todo um contexto econômico, político e social que produz (ou abandona) órfãos e órfãs com esse perfil (grupos de irmãos... crianças maiores... com problemas de saúde...)?

“A questão financeira da (família biológica) leva aos maus tratos, às drogas, que levam à negligência. A gente vê que no fundo tem a miséria. Então a gente trabalha para a criança voltar”, conta Helerson.

“São famílias muito empobrecidas, crianças negligenciadas, pais dependentes químicos, de famílias numerosas, com muitos filhos. São crianças que foram acolhidas depois de denúncias e que o Conselho Tutelar faz o acolhimento institucional porque não encontrou outro familiar que pudesse acolher. Então são histórias de violência, de ameaças, dívidas de droga dos pais”, complementa a assistente social Marcela Costa, que compõe a equipe técnica da 1ª Vara da Infância e Juventude da Serra.

ABRIGO

Quem deseja adotar pode esquecer a ideia de que vai chegar a um abrigo e escolher a criança. Isso não é mais permitido. Tudo para evitar que crianças e adolescentes sejam tratados como objetos em exposição. Não são. Sem contar que a maioria das crianças em abrigo não estão disponíveis para adoção ou podem criar expectativas de que vão ser adotadas, sem nenhuma garantia de que isso de fato vá acontecer.

Em visita a um abrigo da Serra, conhecemos Fabiano (nome fictício), 9 anos. Perguntado sobre como era viver ali, ele respondeu: “É chatice”. Num primeiro momento, a impressão que fica é de que ele acha o local entediante, mas, mais tarde, descobrimos que o abrigo promove diversas atividades para estimular a socialização das crianças e dos adolescentes que ali vivem.

Chatice, na verdade, foi a palavra que Fabiano encontrou, com seu vocabulário ainda em construção, para descrever a sensação constante de espera: “Quero muito ser adotado”, explicou depois.

No dia da visita, as crianças demonstraram uma timidez natural, como a de qualquer ser humano diante de um estranho na sua rotina. Mas essa nem sempre é a regra. “Quando você chega a um abrigo, elas se abrem e te abraçam. Aí vai um pessoal mais emocional e pensa que houve uma conexão. Mas elas abraçam todos que chegam”, explica o psicólogo da Ceja, sobre não permitirem a escolha de crianças.

PROCEDIMENTO

Com a certeza de que querem ser pais e mães, pretendentes devem procurar a Vara da Infância e Juventude e encarar um processo de habilitação, que, no Estado, pode durar cerca de seis meses. Daí até conseguir a adoção, o tempo vai variar de acordo com o perfil pretendido. Se a preferência for por bebês, há casos de 3 a 4 anos de espera. Se for por crianças maiores, a espera dura meses.

A princípio, não há impedimentos para uma pessoa adotar: condição financeira, orientação afetiva e sexual e estado civil pouco ou nada pesam sobre a concessão da habilitação. Mas o desejo genuíno de serem pais e o amor têm que estar presentes.

“A adoção não pode ser um ato de caridade. Tem que ser um ato de amor. Tem que ser algo que vá realizar o adotante. Porque adoção é irrevogável, você está criando um vínculo de paternidade com aquela criança. É algo de muita responsabilidade para ser feito por caridade”, diz o defensor público Renzo Gama Soares, do Núcleo de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado. Em casos de adoção, o órgão atua mais quando o adotante não tem condições de contratar um advogado particular para lidar com as demandas judiciais.

O amor que o defensor cita é o mesmo que Nauri Bento Pereira, 51, diz sentir pelo filho Pedro, 7 anos. “Quem teve sorte fomos nós. Ele foi uma bênção na nossa vida. É um presente de Deus”, empolga-se Nauri, que adotou o menino após, acompanhada do marido, Saimonton de Lima Pereira, 52, criar duas filhas, hoje já adultas.

O curioso é que, em comum aos pais e mães adotivos, há o relato de que, conforme a criança cresce, ela desenvolve alguma característica física parecida com a dos adotantes. “A Lavínia tem essa parte aqui da orelha (e aponta para a lateral do órgão) que só eu e uma sobrinha temos”, insiste Thanany. Se isso tem alguma comprovação científica, por enquanto não sabemos. Mas quem somos nós para contestar as certezas de uma mãe?