Texto: Luisa Torre, Mikaella Campos e Natália Bourguignon
Fotos: Marcelo Prest
Primeiro, chegam as sacolas. Depois, os urubus. Então, nesse lugar insalubre, dominado por um cheiro insuportável, cheio de moscas, baratas, ratos e animais mortos, surgem as pessoas em busca de renda e de sobrevivência. Elas arriscam a saúde e mesmo a vida para retirar das montanhas de lixos, em aterros ilegais, materiais recicláveis misturados a rejeitos, alguns contaminados.
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Essa triste realidade ainda está presente em pelo menos dois municípios do Estado, onde existem lixões de onde famílias tirando seu sustento num trabalho degradante, sem uso de equipamentos de proteção - como botas e luvas -, vulneráveis a acidentes com itens hospitalares, descartados sem qualquer controle ambiental. Em outras 13 cidades, o descarte dos resíduos ainda é irregular, em aterros controlados, um meio termo entre lixão e aterro sanitário, com grades, mas sem licenciamento ambiental.
Apesar de proibidos, os lixões a céu aberto continuam a existir em todo o país. A situação é igualmente grave até em municípios que já fecharam os depósitos de lixo, criaram associações de catadores, mas não implantaram uma coleta seletiva eficiente, transformando a sede dessas organizações em verdadeiros aterros sanitários sem licenciamento, enviando todo tipo de sujeira, como restos de comida, papéis higiênicos usados e fraldas descartáveis junto ao que pode ser reaproveitado.
Trinta anos depois de o jornalista e cineasta Amylton de Almeida ter revelado, em seu documentário “Lugar de toda pobreza”, o drama de famílias que viviam do lixão de São Pedro, hoje no Espírito Santo muita gente continua a tirar o sustento do que é jogado fora. De lá para cá, o cenário melhorou. A imagem de adultos e crianças catando comida já não existe mais. A busca não é mais por alimentos, e sim, por materiais recicláveis que valem dinheiro.
Numa estrada de terra vermelha, no alto do morro, em um bairro pobre de Barra de São Francisco, no Noroeste do Estado, uma associação de catadores formada por 12 famílias trabalha diariamente atrás de “tesouros” num terreno totalmente irregular e que chegou a ser interditado pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) no ano passado. As famílias chegaram a ficar três meses sem ter de onde tirar seu sustento. Porém, como o local nunca foi lacrado, eles voltaram ao trabalho nas mesmas condições insalubres.
Ali, todos os dias, à tarde e à noite, cinco caminhões da prefeitura despejam toneladas de lixo domiciliar, materiais hospitalares e de varrição de ruas. A cidade tem descumprido o Termo de Compromisso Ambiental (TCA), assinado com o Ministério Público do Espírito Santo (MPES), assim como outras 14 cidades, em 2013. O acordo previa, para todas as cidades, o fechamento de locais como esse, a implementação da coleta seletiva e o fomento do trabalho organizado e formal de catadores.
“Quem está na associação tem o rótulo de catador, mas eu costumo falar que a gente nem é catador, é praticamente lixeiro. A gente trabalha dentro do lixo, da célula. É para onde vem lixo hospitalar, animais mortos. Tudo que você imaginar tem aí”, diz o catador David Pereira dos Santos, de 48 anos, membro da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Barra de São Francisco (Ascamarb).
O lixão de Barra de São Francisco é um dos maiores do Estado e um dos casos mais críticos. A “riqueza” tirada desse espaço vai de papelões a plásticos, materiais que já deveriam ser coletados separadamente antes de chegar às mãos desses catadores, que tem ganhado em média R$ 550 por mês com a venda desses artigos.
Toda a renda gerada pelos associados é dividida. Quem falta tem desconto no “salário”. Eles trabalham das 8 às 17h, com pausa para o almoço. O local para preparar as refeições é precário e fica dentro da construção que abriga a associação, dentro do terreno do lixão.
Para conquistar essa quantia, de 60% do salário mínimo, essa gente precisa recolher 4 toneladas de papelão, 1,6 toneladas de plástico, 2 toneladas de garrafas pet, 1,6 tonelada de sucata de plástico (como baldes e parachoques), além de outros materiais que chegam em menor volume, como latinhas, cobre, plástico filme e sacolas. Garrafas de vidro também têm compradores, os alambiques da região.
“Estou aqui há 7 anos. Era dona de casa, mas meu marido morreu e há um ano, cortaram minha pensão. Era um complemento de renda que virou renda principal. Eu gosto de trabalhar aqui. Já acostumei. O problema maior para mim é encontrar cachorro morto. Não suporto ver bicho morto”, conta Luzia Mota dos Reis, de 56 anos. Ela conta que nunca teve carteira assinada e não sabe como irá se aposentar.
As tentativas do poder público de fechar o local preocupam os catadores, diz Osvaldo Pereira dos Santos, de 60 anos. “Já falaram que a intenção deles é acabar com o lixão. O problema é que sem a coleta seletiva, nós ficamos sem serviço. A gente já trabalha aqui e tira menos que o salário mínimo. Na última carga, tiramos R$ 540. Para quem tem família, paga aluguel, paga energia, paga água, é complicado”, lamenta.
Dentro do lixão, moradores da cidade também se aventuram, vez ou outra, em busca de outros materiais que podem ser aproveitados ou vendidos. Em busca de roupas de criança e de adulto, a faxineira Lucinalva Carmo Limas, de 44 anos, é uma dessas pessoas. Ela mostra uma sacola com roupas para meninas em perfeito estado.
“Eu trabalho, mas venho uma vez por semana. De roupa e bijuteria, tem muita coisa boa. Hoje peguei para minha neta. Em casa, eu fervo, esfrego no tanquinho e passo álcool na roupa. Compensa, pois as roupas são boas. Eu não ligo para urubu”, conta.
A quase 500 quilômetros de Barra de São Francisco, em Apiacá, no Extremo Sul do Estado, a situação não é tão diferente. Por lá, trabalhadores também caçam materiais recicláveis entre os entulhos em outro lixão que já deveria estar extinto. Usando bermuda e chinelo, Romildo Nascimento, de 61 anos, trabalha no local há cerca de dois anos em busca de latinhas de alumínio e fios de cobre. Com o serviço, o rendimento mensal gira em torno de R$ 200 a R$ 300.
“Trabalhei muito na roça, na lavoura de cana. Mas agora não está mais aparecendo nada não. Se aparecesse, eu ia. Em todo lugar está faltando serviço. Para quem não tem estudo é pior ainda. Eu comecei a trabalhar com 7 anos plantando cana. Sete anos, é mole? Agora não pode trabalhar até ter 18”, diz ele, rindo.
Segundo Romildo, a prefeitura já cadastrou 10 pessoas para formar uma associação de catadores no município. No entanto, transformar o terreno alugado que recebe lixo em uma associação é algo que ainda parece longe de acontecer. “Tem que fazer um galpão aqui, trazer uma prensadeira, a ideia é essa. Aí tem que vir água, energia. Falta muita coisa.”
O secretário de Meio Ambiente de Barra de São Francisco, Bouzan Prado, diz que o município não tem dinheiro para destinar seu lixo para um aterro privado. “São R$ 138 mil por mês, no mínimo. Com isso, a gente faz um aterro licenciado aqui. Vamos comprar outra área e licenciar ela. Temos um ano e meio para resolver. Aquilo ali está desumano. Queremos estruturar a associação, implantar a coleta seletiva. Mas não há disponibilidade financeira”.
Já a Prefeitura de Apiacá informou que a associação de catadores foi criada em outubro, com 10 pessoas, e um galpão será construído. A associação ainda vai receber equipamentos do governo do Estado. A prefeitura informou que vai implantar a coleta seletiva, e o lixo deve ser destinado para um aterro sanitário em Cachoeiro, com transbordo em parceria com as prefeituras de Bom Jesus do Norte e São José do Calçado. No entanto, ainda não foi definido nenhum prazo.