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Milson, um jornalista político

Veja os destaques da coluna publicada no jornal A Gazeta deste domingo (25)


Milson nos deixou no mês de junho. Onde quer que ele esteja, pelo tempo em que lá se encontra, já deve ter escrito um livro, inventado mil personagens e organizado os novos companheiros em um musical de Natal ou em uma peça infantil para as alminhas desencarnadas.

Assim era Milson. Inquieto, incansável, multimidiático e multiperformático. O que poucos sabem ou se recordam é que ele também deixou sua marca inconfundível no jornalismo político capixaba. Não diremos que a coluna de hoje é uma homenagem póstuma ao gênio – pois ele mesmo reprovaria a ideia, achando-a careta demais. Mas trazemos declarações inéditas concedidas por ele, em 2005, a este colunista, só mais um dos muitos e muitos que tiveram a vida inspirada e a carreira incentivada pelo amigo Milson Henriques.

Milson Henriques
Milson Henriques
Foto: Amarildo GZ

Como nenhum outro capixaba (no caso dele, por opção), Milson soube encarnar o “alternativo”, quer no campo do jornalismo, no teatro, no canto, na dança ou no cartunismo, camaleônico que sempre foi. Como jornalista, sempre deu um jeito de cutucar o sistema, controverter a ordem vigente dentro da própria imprensa, numa época em que as redações agonizavam, sufocadas por diversas restrições à liberdade de expressão.

No apogeu do regime militar, com a mordaça em pleno vigor, ousou fazer troça das “ilustres” locais; tingir de cores extravagantes o preto e branco que a imprensa então veiculava; sacudir, com sua arte libertária, o provincianismo de Vitória. Com talento e inventividade, conseguiu instalar, nas páginas dos maiores diários, espaços que em nada condiziam com o restante da publicação, expressões da imprensa alternativa dentro da imprensa mais tradicional. Movido por um inarredável desejo de incomodar o poder instituído, sempre atuou qual a mosca que pousou na sopa das autoridades regionais.

Durante os “anos de chumbo”, Milson pautou a sua luta política pelo viés da cultura – destoando, portanto, do pensamento que então predominava entre a militância de esquerda, muito mais inclinada a um marxismo ortodoxo.

Milson chegou ao Estado em autoexílio, fugindo da perseguição que sofria na Bahia (ele é natural de Campos, RJ). Chegando a Vitória, caiu de amores pela cidade. Gostou tanto que resolveu ficar. Não é isso, Milson?

“Cheguei aqui em 29 de julho de 1964, logo após o golpe militar. Eu ia para o Rio Grande do Sul e de lá ia fugir pro Uruguai, mas chegando em Vitória o dinheiro acabou”. De imediato, foi parar em A GAZETA, onde – sempre informalmente – atuava como colaborador do cartunista Janc. Um belo dia, surgiu a ocasião, e o espírito subversivo começou a mostrar a que viera:

Milson Henriques
Milson Henriques
Foto: Arquivo/GZ

“O Janc estava meio enrolado para finalizar a sua coluna e me ofereci para escrever alguma coisa. Na Gazeta, a moda na época eram as colunas sociais. A Gazeta tinha sete colunistas sociais, em um jornal! Você ser citado numa coluna era um grande acontecimento. Mas eu fiquei puto, achei aquilo uma merda, e, nesse dia, criei para a coluna do Janc uma pseudocolunista chamada Dondoca Já Se Foi. Aí, tudo que saía na página policial, eu transformava em notícia da coluna social: ‘No elegante Morro do Macaco, num festival de porrada entre a polícia, foi servida uma maconha livre e não-sei-quê’. E escrevia aquilo como se fossem notícias da sociedade. Aí começou a fazer muito sucesso e eu comecei a fazer sempre. Essa coluna, por exemplo, já era muito de esquerda, mas eu falava da sociedade, não falava da política.”

O sucesso foi tão grande que Milson foi contratado por Maria Nilce, uma colunista iniciante, casada com o diretor do jornal A Tribuna. “Ela, muito sabidamente, como eu comecei a imitá-la, me convidou para descobrir quem era essa tal de Dondoca. Ali, eu criei um jornal dominical que me levou para a prisão várias vezes. Era o ‘Jornaleco’. O slogan era assim: ‘Um jornal independente, dependente de um jornal’.”

O “Jornaleco”, como o nome conota, era um caderno à moda dos jornaizinhos de esquerda que então começavam a circular – a chamada “imprensa nanica”. “Eu fazia um estilo ‘Pasquim’, antes mesmo que ele existisse. E, nessa página, eu fazia humor, crítica de livros, de cinema, e sempre ‘esculacho’: ‘As dez coisas que mais me incomodam: 1° milico; 2° milico; 3° milico...’. Esta, por exemplo, me levou para a prisão...”

A propósito das prisões, Milson tem autoridade para falar. Entre detenções e “esclarecimentos”, conta ter sido intimado pelo menos treze vezes a se apresentar diante dos militares: “Às vezes eu era preso. Mas a maioria era para prestar informações, por que eu tinha escrito aquilo, coisa e tal. Era aquele negócio de te amedrontar. Você levava vinte dias sem ousar escrever nada, porque já estava fodido. Durante aqueles vinte dias, podia acontecer o maior roubo do mundo que eu não ia noticiar, charge, nada disso. Era uma forma de eles te tolherem, de calarem sua boca”.

Depois de lançar 84 números do “Jornaleco”, Milson resolveu se transferir, junto com boa parte dos colegas, para o recém-fundado O Diário, que surgia como uma possível válvula de escape. Não chegava, de fato, a ser um jornal independente, porém, pela sua proposta, havia uma margem bem maior para sátira, humor e inovações.

“O Edgar dos Anjos sempre foi meio porra-louca e resolveu fazer. Era meio jornal de oposição, na medida do possível. Aí, como não podíamos dizer muito na Tribuna, que estava cheia de censores, resolvemos pular pra lá. Eu, o Amylton de Almeida, Paulo Torre, Carmélia, todo o pessoal de esquerda, esse pessoal chamado na época de ‘porra-louca’.”

Depois dessa passagem marcante pelo Diário, Milson migrou novamente, dessa vez para O Debate, outro jornal que mal abrira as portas. “Ali, eu começava com uma página chamada ‘Enfim Livre’. Aí a censura me cortou e eu coloquei ‘Enfim Livro’, comecei a escrever sobre livros. Mas aí eles também fecharam, porque todo livro que eles elogiavam eu deixava fora e todos de que eles não gostavam eu elogiava. Aí eles cortaram e eu comecei a escrever uma coluna com o nome ‘Meu Canto’, que começou com o nome ‘Canto Livre’. Até que eu falei ‘Neste canto livre, meu canto ninguém pode julgar...’.”

Enfim, contratado

Milson Henriques
Milson Henriques
Foto: Arquivo/GZ

No ano de 1973, com a repressão ainda no ápice, Milson enfim foi contratado oficialmente como jornalista, para fazer a charge diária de A GAZETA – fim da era do “me dá um dinheirinho que eu preciso”; depois, dois anos na Tribuna; depois, de volta à GAZETA, sempre responsável pela charge, um dos espaços mais visados pelos censores devido a seu forte apelo político. “As charges eram muito censuradas. Nós passávamos pela censura, pela autocensura e pela censura do editor. E ficávamos putos da vida. Às vezes a gente ‘passava’ e o jornal ia rodar, mas podia empastelar. E eu ficava puto, porque às vezes tinha uma ideia genial, falava com o editor: ‘Vamos fazer assim e assim’ e ele ‘Não passa, Milson’, porque tinha medo. Era duro fazer passar uma virgulazinha que fosse”.

Na ânsia por poderem minimamente dizer alguma coisa, foram várias as produções alternativas que Milson e companhia tentaram levar a cabo. Uma delas foi a Revista Ilha, que (agouro do nome?) só teve uma edição. “Era um desabafo, porque nós estávamos doidos para falar, para publicar, e não podíamos nos jornais. Nós tínhamos que mostrar para as pessoas que não concordávamos com nada do que estava ali... Não era rebelde sem causa, era mais para ‘desalienar’. A censura cortava, mas tivemos várias tentativas. Tinha uma revista de humor que se chamava ‘Cosquinha’, que era para nós, humoristas, fazermos as charges que nos proibiam de publicar nos jornais. Mas aí nos proibiam lá também.”

Sobre a sua resistência naqueles anos férreos, Milson é categórico: “Não quero ser lembrado como um homem que viveu naquele tempo. Não! Eu não concordava com nada daquele tempo em que vivi. E tinha que provar isso de algum modo...”

Alguém tem dúvidas de que ele conseguiu? Obrigado por tudo, Milson!

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